terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

"DIA DE POESIA" Caetano Veloso

Hoje, no "Dia de Poesia", posto uma homenagem a um dos maiores artistas brasileiro: o baiano Caetano Veloso, músico, compositor, cantor, poeta e escritor. Dentre centenas de poemas, por ele musicados, destaco "Livro"  e  "Haiti".


LIVRO
Caetano Veloso

Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.


Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.


Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:


Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.


HAITI
Caetano Veloso

Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado,
Pra ver do alto a fila de soldados - quase todos pretos - 
Dando porrada na nuca de malandros pretos,  de ladrões mulatos,
E outros quase brancos, tratados como pretos.
Só pra mostrar aos outros quase pretos (e são quase todos pretos),
E aos quase brancos, pobres como pretos,
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados.
E não importa se olhos do mundo inteiro possam
estar por um momento voltados para o largo,
Onde os escravos eram castigados.
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de
meninos uniformizados,
De escola secundária, em dia de parada.
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula.
Não importa nada,
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon.
Ninguém, ninguém é cidadão.
Se você for ver a festa do Pelô, e se você não for...
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

E na TV, se você vir um deputado em pânico mal dissimulado,
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo,
Qualquer plano de educação que pareça fácil, que pareça fácil e rápido,
E vá representar uma ameaça de democratização do ensino de primeiro grau.
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital,
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal.
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual,
Notar um homem mijando, na esquina da rua, 
Sobre um saco brilhante de lixo do Leblon. 
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina...
111 presos indefesos, mas presos,
São quase todos pretos, ou quase pretos,
Ou quase brancos, quase pretos de tão pobres.
E pobres são como podres.
E todos sabem como se tratam os pretos.
E quando você for dar uma volta no Caribe,
E quando for trepar sem camisinha,
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba...
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

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